Barbie, as alegrias e agonias de ser uma mulher no mundo real
- Giovana Costa
- 28 de ago. de 2023
- 8 min de leitura

Por meio da metalinguagem e a ousadia de um filme que sabe que está diante dos olhares curiosos e das expectativas de milhares de espectadores, “Barbie” se afirma por meio de muito sarcasmo, críticas contundentes e sátiras interessantíssimas.
Já que faz um pouco mais de um mês que o longa estreou nas telonas, é no mínimo intrigante observar que numa era de vídeos de até 1 minuto, comentários a todo vapor e dedos velozes, com o objetivo de saciar uma mente exausta — ironicamente — com mais e mais imagens rápidas, parece que sobra pouca reflexão após o hype do longa.
O que parece loucura, afinal, após o lançamento, ou seja, dentro de duas a três semanas de um feed de Instagram repleto de stories com fotos da tela do cinema mostrando o logo pink da Warner Bros., o filme já parecia ter atingido o seu auge de discussões acaloradas sobre tudo que despertou no público, e olha que não foi pouco.
Mas será que acabou mesmo? Quanto tempo um filme continua reverberando nas mentes do público, numa era digital em que a vida curta das imagens dura, no máximo, 24 horas? Será que as questões que ele levanta morrem assim que os stories expiram? Vejamos!
Show me the money, Hollywood!
“Barbie” ultrapassou US$ 1 bilhão em bilheteria global. Um feito muito interessante levando em consideração as mega produções dos super heróis que, até então, quebravam a maior parte dos recordes de bilheteria mundialmente.
Para além do cinema, é importante lembrar que “Barbie” é um filme produzido com o apoio da multinacional Mattel, responsável pela distribuição global da boneca mais famosa da história.
O resultado? Um lucro líquido de US$ 27,2 milhões para a companhia, somente no segundo trimestre deste ano. Portanto, por mais que se estruture a partir de pautas progressistas, numa era em que as novas gerações procuram se informar e pedem por mudanças, o longa também se ambienta em moldes hollywoodianos, e portanto, acontece a partir do capital de uma grande corporação.
Um bom exemplo para ilustrar a situação é o seguinte: se você pesquisar no Google o nome de uma das principais personagens do longa e acrescentar “Barbie” na busca para especificar, é provável que não vá encontrar informações sobre a história. A página estará cheia de links para comprar o boneco produzido pela Mattel com a temática do filme.

Sendo assim, independentemente das críticas diretas a empresa ou até mesmo os divertidos momentos non-sense que acontecem a partir das falas do CEO da Mattel, brilhantemente interpretado por Will Ferrell, o objetivo publicitário é atingido, os lucros seguem bombando e a corporação faturando (de novo, numa metalinguagem, mas desta vez, do filme para a vida real). É só ligar os pontos.
Entretanto, o tom despretensioso e divertido da obra da diretora Greta Gerwig, que também assina o roteiro do filme ao lado de Noah Baumbach, logo conquistou o público. E assim, com uma explosão potente, em tons de pink, conseguiu causar frustração até no diretor Christopher Nolan que se mostrou insatisfeito com a decisão da Warner Bros. de colocar "Barbie" no mesmo dia da estreia de “Oppenheimer”. Situação esta que, deu origem ao fenômeno cinematográfico chamado “Barbenheimer”, num momento de ouro para os cinemas lotados pós pandemia.
Com Margot Robbie dando vida à Barbie e Ryan Gosling interpretando Ken, o mundo encantado e, aparentemente, perfeito à primeiras vistas, chegou às telonas em julho de 2023 e já causou muito furor. Desde os cinemas cheios de pessoas usando roupas em tons de rosa, até os ataques de ira de conservadores, misóginos e extremistas religiosos.
O fato é que, “Barbie’ surpreendeu a todos, e certamente superou a maior parte das expectativas. Afinal, como contar a fabulosa história de uma boneca perfeita que, por anos, permeou o imaginário de garotas ao redor do mundo e as fez se questionar sobre o quão “insuficientemente imperfeitas” elas seriam num mundo com tantas contradições!? E mais: como contar uma narrativa cheia de paradoxos, contando com a produção da multinacional Mattel, num momento em que os olhos estão tão atentos às questões sociais?
O longa bebe da água das dúvidas e das contradições da história da criação da boneca e tenta se manter conciso, autêntico, forte e corajoso ao longo das suas 1h30 de duração, e curiosamente, faz isso de uma forma bem parecida com a experiência de ser mulher num mundo ditado pelas regras do patriarcado.
O bicho papão cor de rosa... BOO!
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, "Barbie" recebeu a classificação indicativa para maiores de 12 e 13 anos, respectivamente. E da mesma maneira que grande parte do público se mostrou entusiasmada pela narrativa, seja pela curiosidade que os primeiros trailers despertaram, seja pela escolha de Gerwig para a direção, uma pequena parcela de conservadores se mostrou bastante incomodada com o lançamento.
No Brasil, por exemplo, logo surgiram postagens de grupos evangélicos que afirmam que a obra de Gerwig seria uma trama com “apelação progressista”, que envolve “feminismo”, “crise de identidade” e “auto aceitação”, o que aparentemente (e surpreendentemente) é considerado um ataque aos ditos “valores cristãos” — pelo menos, para uma pequena parte destes grupos.

Nos Estados Unidos, as críticas começaram mais cedo, antes mesmo de seu lançamento, quando conservadores fizeram uma mobilização, impulsionada pela extrema-direita e também por outros grupos religiosos, para criticar o filme.
Em entrevista para o New York Times, Greta Gerwig falou sobre as críticas conservadoras ao longa: "Minha esperança para o filme é que seja um convite para que todos façam parte da festa e deixem de lado as coisas que não estão necessariamente nos servindo como mulheres ou homens. Espero que com toda essa paixão, se eles o virem ou se envolverem com ele, isso possa lhes dar um pouco do alívio que deu a outras pessoas.", afirmou a cineasta.
É claro que as críticas pautadas em misoginia e machismo escancarados também deram as caras, assim que o filme começou a se destacar. Num momento de alta do número de podcasts e perfis de coaches propostos a ensinar práticas da masculinidade tóxica e ódio às mulheres, “Barbie” logo se tornou uma espécie de ameaça.
Até porque, como as mulheres podem se sentir no direito de discutir as problemáticas do patriarcado, enquanto revisitam memórias de infância e celebram a feminilidade, e tudo isso, pasmem, vestindo rosa?! (Contém ironia, rsrs).
Lembranças doces, receio constante, sentimentos conflitantes e crises existenciais
Com um visual deslumbrante, por meio da direção de arte detalhadíssima de Sarah Greenwood, e pelos figurinos icônicos comandados por Jacqueline Durran, “Barbie” é um filme que toca em muitas questões e atravessa diretamente a experiência de ser uma mulher no mundo real, moderno e atual.

Existem três momentos extremamente marcantes e, que muito provavelmente, trazem à tona muitas lembranças e despertam diversos sentimentos nas mulheres que viveram a experiência de brincar com a boneca, ou que apenas conseguem se enxergar através dos próprios olhos (sem um male gaze de aprovação, por exemplo).
O primeiro é a abertura do filme, que expõe a transição entre as bonecas de pano com brinquedos domésticos que remetem ao trabalho dentro do lar, até o momento em que estas são trocadas pela Barbie. Sim, além de looks incríveis, a boneca também oferece um milhão de possibilidades dentre cenários, profissões e situações diversas.
Greta conseguiu expressar esse primeiro momento com genialidade, oferecendo o sarcasmo, o humor, a rebeldia e a sensibilidade necessárias por meio de uma alusão ao clássico “2001: Uma Odisseia no Espaço”, em que o monólito de Kubrick, é na verdade, uma Barbie gigante, pronta para transformar a brincadeira, a vivência e a imaginação das meninas.
O segundo momento é a transição entre o mundo mágico da Barbie, o crescimento e a percepção de que você não é mais uma menina, e agora, precisa encarar o mundo real, e a forma como você é vista nele. O que pode significar muito menos magia, possibilidades, e até mesmo, sonhos. Em cena, vemos Sasha, interpretada por Ariana Greenblatt, desinteressada em brincar com a boneca, um pouco mais impaciente e enfrentando as novidades e incertezas da vida de uma adolescente.
O terceiro momento acontece após o contato da Barbie com a Barbie Estranha, interpretada pela genial Kate McKinnon, que representa uma boneca esquecida, aquela que geralmente têm os cabelos picotados com tesoura e o rosto riscado de canetinha. Trata-se da ruptura da própria boneca com a perfeita Barbieland, já que, ao encarar a realidade, ela encontrou olhares com tons de violência, diversas inseguranças, celulite e até pensamentos sobre a morte.
Enquanto isso, Ken teve a possibilidade de experimentar as maravilhas de ser admirado e respeitado em um mundo onde, atualmente, os homens ainda estão no poder mas precisam ser mais discretos quanto ao preconceito e a misoginia. No mundo real, os homens podem pilotar carrões, domar cavalos e existir livremente, sem julgamentos sobre as suas condutas ou questionamentos em relação às suas escolhas.
Barbie, então, se vê diante de uma espécie de Ken “red pill”, que deposita suas frustrações — de não saber quem ele é e de não ter seus sentimentos correspondidos — no seu próprio desenho do que seria o patriarcado, ao transformar a Barbieland em Mojo Dojo Casa House (que, no mundo real, poderia facilmente ser confundida com “X”, a rede social do Elon Musk).

Essa ruptura também dá espaço para discussões em torno da saúde mental, maternidade, disparidade entre os gêneros, pressão estética, padrão de beleza e a exaustão da mulher moderna.
Qual é o peso de ser uma mulher no mundo real?
O filme é mais focado em questões individuais e, infelizmente, pouco se aprofunda em temas mais específicos quanto à grupos frequentemente excluídos das narrativas, como é o caso de mulheres pretas, por exemplo. Inclusive, vale lembrar que, no final dos anos 1980 e meados de 1990, era muito raro e custoso encontrar uma Barbie que não fosse branca ou loira.

Ainda assim, grande parte dos temas citados anteriormente aparecem de alguma forma no pujante discurso de Gloria, interpretada por America Ferrera. Ela trabalha na Mattel, tem uma ligação com a boneca, e é mãe de Sasha. Sua fala começa com a frase “É literalmente impossível ser mulher”, e segue, sem trilha e a partir de um cortante silêncio, com os olhares atentos das personagens e também das espectadoras. Gloria escancara as pressões e as expectativas que são despejadas nas mulheres.
A fala de Gloria concentra-se em grande parte nos fatos que permeiam a vida das mulheres e que levam a constatação do peso de tantas cobranças e inúmeras contradições que, constantemente, levam-nas à exaustão, à revolta e aos sentimentos de insuficiência.
O discurso e outros detalhes no longa, como a fala da Barbie Advogada, interpretada por Sharon Rooney, de que as mulheres podem ser lógicas e sentimentais e nada disso as diminui: pelo contrário, expande seu poder, demonstram como o olhar de Greta Gerwig foi atento. Sagaz o suficiente para entender que além de atravessar as memórias afetivas e os traumas de mulheres que sentiram o gosto de serem imperfeitas frente a boneca perfeita, a diretora se propôs a destrinchar questões essenciais, de forma delicadas e irônica.
O longa não é capaz de tocar em todos os assuntos necessários com a profundidade que demanda, mas para padrões hollywoodianos, e apesar de contar com a produção da Mattel, acerta em outros aspectos. Inclusive, vale pontuar aqui a ascensão de grandes diretoras a frente de projetos grandioso como é o caso de Greta e toda a produção de "Barbie".
O filme não é uma solução, mas certamente pode ser um ponto de partida. Seja para resgatar um olhar mais acolhedor entre as mulheres, para despertar a curiosidade em quebrar padrões segregadores, para encorajar jovens meninas a descobrir o seu empoderamento, ou simplesmente para gerar discussões e reflexões úteis a toda a sociedade. Questionamentos que não precisam ser um feminismo mercadológico, devem ser mais profundos, se estender nas discussões do dia a dia entre homens e mulheres, e sim, podem durar muito mais do que um simples hype nas redes sociais.
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