Atuar e dirigir: quais são os desafios enfrentados pelas mulheres no cinema
- Giovana Costa
- 12 de nov. de 2019
- 9 min de leitura
Entrevista com Sabrina Greve. Atriz, cineasta e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela USP sobre a representação das mulheres e os papéis no cinema

Quando pequena, Sabrina Greve queria ser bailarina clássica, mas na verdade, foi o teatro que acabou se tornando sua paixão, ainda que fosse muito tímida. Seu interesse despertou aos 11 anos, quando acompanhada de sua mãe que costumava levá-la para ver as peças em cartaz, a pequena Sabrina assistiu “Dona Doida” com Fernanda Montenegro no Teatro Municipal. Mesmo sem entender nada, ela ficou completamente hipnotizada pela encenação, então decidiu naquele momento que seria atriz. Começou sua carreira ainda pequena, aos 12, quando começou a fazer cursos de teatro e estreou em um espetáculo infantil que ficou seis meses em cartaz no teatro Ruth Escobar.
Aos 13, prestou pela primeira vez o teste para ingressar no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), pois almejava trabalhar com o diretor Antunes Filho. Ao longo dos anos, após quatro recusas, ela finalmente entrou e permaneceu trabalhando por alguns anos e foi neste período que começou a se envolver indiretamente com o cinema: “Sou da geração do videocassete, de assistir muitos filmes, rebobinar a fita. Quando eu tinha 20 anos, o cinema brasileiro estava nos seus primeiros anos da retomada. Nem cogitava fazer cinema, estava no CPT totalmente mergulhada no teatro. Mas o Antunes era um apaixonado pelo cinema, víamos e estudávamos muitos filmes de arte e comercias também, sem distinção. Criamos um vasto repertório de cinema europeu, sueco, dinamarquês, americano, japonês... enfim, posso dizer que através do teatro, estudei muito cinema”.
Seguindo seus sonhos, ela atuou em duas peças dirigidas por Antunes e em três edições da peça “Prêt-à-Porter”, um dos projetos mais importantes da sua trajetória, responsável por fortalecer sua formação no audiovisual. “Trabalhávamos tanto como atores nas peças em cartaz, como professores nos cursos do CPTzinho, além dos ensaios permanentes em outros projetos. O CPT era uma espécie de oásis artístico de permanente pesquisa e aprimoramento para o ator, um lugar único para a formação completa do artista. Tenho muita gratidão e respeito pelo Antunes, devo a minha principal formação a ele”, revela. Como começou a trabalhar cedo, sua trajetória acadêmica aconteceu depois da sua saída do CPT, quando começou a graduação em Cinema na FAAP.
Sabrina conta que não fez teste para o seu primeiro filme, “Uma vida em segredo” (2001) de Suzana Amaral. Ela recebeu o convite de Suzana que, a pediu para que lesse o livro, e logo ela estava em Pirenópolis protagonizando seu primeiro longa metragem. Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela USP, Sabrina também é roteirista e diretora, ofícios que segundo ela, são desdobramentos da trajetória como atriz, muito estimulada pelo projeto “Prêt-à-Porter“. “O projeto começou a ser desenvolvido em 1997/8, bem no período da retomada do cinema brasileiro. A Laís Bodanzky, por exemplo, estava filmando Bicho de sete cabeças na virada do século. Ela também passou pelo CPT anos atrás, e foi uma certa referência de trajetória para mim, uma inspiração para eu me arriscar também na direção cinematográfica”, conta.

Já atuou em diversas montagens teatrais como "Fragmentos Troianos", "Animais na Pista" e "Ligações Perigosas". Dirigiu o curta metragem "3.33", a peça "Esquecendo Wimbledon", o filme "Irina". Participou das minisséries de televisão "A casa das sete mulheres" e "Carandiru, Outras histórias". E recentemente protagonizou o filme "Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois", que lhe garantiu o prêmio de Melhor Atriz no 26º Cine Ceará. Pensando sobre sua trajetória e os desafios da carreira de atriz, conversamos um pouco sobre os papéis e a representação feminina no cinema.
Ela na Tela - Em 2002, você interpretou a tímida, introspectiva e doce Biela no filme brasileiro "Uma Vida em Segredo", dirigido por Suzana Amaral, com roteiro baseado em livro do mesmo nome de Autran Dourado. Este foi o seu primeiro papel no cinema. Me conta um pouco sobre a personagem? Como foi para você interpretar esse papel?
Sabrina - Foi um encontro com minhas raízes. Sou bisneta de imigrantes italianos, que vieram trabalhar nas lavouras do interior de São Paulo. Eu nasci em Limeira, mas sempre vivi na capital. A Biela era uma mulher do campo e uma grande quituteira, e eu da cidade que mal sabia fritar um ovo. Mas algo devia estar pulsando em mim quando a Suzana me viu em cena e sentiu que eu deveria fazer o filme. Foi um lindo encontro com a Suzana, com meus antepassados, e comigo mesma me descobrindo atriz de cinema também. Acho que o fato de nunca ter atuado para a câmera também contribuiu para o filme, porque quando revi recentemente o filme em um mostra de cinema, eu mesma me surpreendi comigo. Há uma certa inocência na minha atuação que acho pouco provável que eu conseguisse reproduzir hoje. Então tem ali uma timidez e doçura da personagem que também pertencia àquela jovem atriz. As lentes são muito poderosas para captarem honestidade de um primeiro olhar, e acho que minha inexperiência como atriz de cinema foi um trunfo para a personagem.
EnT - No filme de Suzana Amaral é possível perceber que o protagonismo é predominantemente feminino, apesar das mulheres na narrativa viverem em um tempo em que todas as decisões eram tomadas pelos homens, aos quais elas obedeciam fielmente. No filme existem várias mulheres com personalidades e posições sociais diferentes. Como você avalia a representação dessas diferentes mulheres no filme?
Sabrina - Lembro-me da Suzana ter muito clara essas questões, e apesar do filme não conter diretamente uma crítica a sociedade patriarcal, está presente subliminarmente. A cena em que o marido pede café à esposa e ela o atende de maneira submissa, é um exemplo disso. E em relação a Biela, Suzana e eu optamos por não transformá-la em uma vítima quando ela opta por não casar e ser “aceita” na sociedade como esposa e mãe de família. A escolha da Biela era seguir seu coração no que lhe dava real prazer, como cozinhar e viver próxima da natureza, com a companhia de um cachorro. De uma certa maneira, o filme tem um viés feminista, uma vez que estava contextualizado em uma época onde a felicidade das mulheres estava atrelada a um marido e filhos. E Biela rompe com esse padrão, a sua maneira, e sem grandes arroubos. Ela opta pela “solidão”, e vive feliz em contato com a natureza, seus quitutes e seu amigo cachorro. Suzana e eu discutimos muito sobre isso, na conquista de liberdade da personagem e não simplesmente no desencaixe aos moldes sociais da época.
EnT - Ao longo de sua carreira, você atuou em longas, novelas, peças e minisséries. Além disso, como cineasta você já dirigiu telefilmes e curtas. Entre eles está “3.33”, que você escreveu e dirigiu, protagonizado por Bárbara Paz. Como foi a experiência de escrevê-lo e dirigi-lo?
Sabrina - Foi um curta metragem realizado no quinto semestre da faculdade, acho que meu primeiro trabalho mais engajado como diretora. O curta tem um caráter bem experimental, e escrevi especificamente para a Bárbara fazer. Ela foi muito generosa e parceira em se entregar a um bando de estudantes que ainda errava muito. [Risos] Ela é a alma do filme. Já tínhamos trabalhado como atrizes juntas, então havia uma cumplicidade que foi muito fácil transpor para a relação atriz/diretora. Filmamos em um tempo relativamente curto, cerca de 3 diárias, e em película (super 16). Não tínhamos dinheiro algum, foi um coletivo de estudantes e fiquei bem feliz com o resultado, embora hoje fizesse tudo diferente.
EnT - Em sua carreira, como atriz e diretora de atores, quais foram os maiores desafios que você já enfrentou? Você sentiu que tornar-se diretora te deu uma nova percepção sobre a atuação?
Sabrina - Desde que comecei a dirigir percebi que melhorei como atriz e vice versa. Atuar para o cinema não implica apenas “estudar a personagem”, a feitura de um filme tem tantos pormenores que a experiência em set ajuda muito para adquirir uma certa técnica com câmera e equipe, e consequentemente, um trabalho mais aprofundado da personagem em si. A consciência da obra completa amplia e muito a visão da personagem; desde os primórdios do cinema alguns cineastas tentam defender esse paradigma: o ator deve participar do processo de criação como um todo. Como diretora e com a experiência de atriz, tento sempre aproximar o ator desde a criação do roteiro e estímulo uma troca colaborativa. Percebo que o trabalho torna-se mais orgânico e consequentemente, mais prazeroso para todos.
EnT - Hoje em dia, existe uma discussão muito significativa em relação às questões de gênero e o protagonismo da mulher. Pensando no cinema como uma forma de representar a realidade através da arte e levando em consideração as personagens que você já interpretou, como você enxerga a representação das mulheres no cinema? Acredita que sempre foi a mesma ou houveram avanços e transformações?
Sabrina - Assim como a sociedade está em transformação, a representação da mesma também. Cada vez mais vemos a representação da mulher livre dos estereótipos submissos e sexualizados e, quando esses preceitos estão presentes, são de maneira crítica. Vejo uma preocupação também de alguns homens em inserir mulheres nas equipes, sobretudo quando há questões que abarquem o universo feminino no projeto. O importante é que estamos atentas como nunca, e isso só contribui para a evolução dessa representação.
EnT - Atualmente, as mulheres têm se posicionado sobre diversas questões que envolvem a indústria do cinema, mulheres e homens. Seja sobre a diferença salarial entre atrizes e atores, os abusos sexuais e morais e até mesmo a falta de reconhecimento, diversidade e representatividade em premiações como o Oscar, por exemplo. Você já interpretou algum papel em que se sentiu desconfortável por algum tipo de abordagem, enquadramento mais sexualizado ou então pelo próprio rumo da narrativa em que sua personagem foi subestimada ou teve pouco protagonismo, pelo fato de ser mulher?
Sabrina - Já passei por situações constrangedoras de assédio sexual e moral. Acho pouco provável que uma mulher nunca tenha passado, independente da profissão. É um modelo cultural de comportamento que deve ser combatido e eliminado de uma vez por todas da nossa sociedade. Acho que a nova geração está aprendendo a se proteger e se colocar mais em relação a isso. Gostaria de destacar também que o assédio independe de gênero, e que a profissão de ator/atriz torna tudo mais vulnerável por ser um ofício que demanda muita exposição, seja ela física, emocional ou psicológica. E a linha do abuso muitas vezes torna-se tênue, é preciso ter muito autoconhecimento e coragem para identificar. Tive muitos encontros, jantares, trocas que julgava profissionais e que, no fim, revelaram-se uma porta para uma cantada que me constrangeu. Além da questão do assédio, acho a falta de reconhecimento tão grave quanto. Quantas vezes fui preterida em uma colocação por um hábito cultural em ignorar a fala das mulheres e, infelizmente, muitas vezes pelas próprias mulheres! Creio que a ruptura se iniciou, mas ainda está muito longe de uma igualdade entre gêneros, em todas as esferas. Mas agora essa ferida esta exposta, cabe a nós não esconder mais.
EnT - E em relação a sua atuação como diretora, você já sentiu algum tipo de discriminação por ser uma mulher na dirigindo produções?
Sabrina - Felizmente não. Como os projetos eram meus, tive a oportunidade em escolher parte da equipe. Não sei como seria caso fosse contratada para algum projeto... mas creio que o mercado esteja cada vez mais consciente e atento em relação a essas questões.
EnT - De acordo com estudos da Agência Nacional do Cinema - ANCINE, o mercado cinematográfico brasileiro é uma indústria protagonizada por homens brancos. Tendo como base os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente no ano de 2016 mostra que os homens lideram a direção de 75,4% dos filmes. As mulheres brancas, por sua vez, dirigiram 19,7% dos filmes, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros. Em 2016, nenhum longa foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra. De acordo com dados de 2017 e 2018 da ANCINE, em relação ao estudo sobre a participação das mulheres no audiovisual, houve um aumento da participação feminina nas atividades de direção, roteiro e direção de fotografia. Ainda assim, os números não são tão expressivos. A que fatores você atribui essa dominância dos homens brancos na direção do audiovisual brasileiro?
Sabrina - Acho que essa questão não é exclusiva do audiovisual brasileiro, é sociocultural no mundo todo. Estamos passando por um momento único onde finalmente há o reconhecimento dessa questão e vejo movimentos fortes que estão desconstruindo essa dominância. É um processo, leva tempo, mas o importante é que já começou e não tem volta.
EnT - Você acredita que existem diferenças entre produções feitas exclusivamente por homens e produções com mais diversidade, isto é, em que existam também mulheres? Quais?
Sabrina - Eu acredito na diversidade para além da questão de gênero. Quando houver inclusão de todas as minorias, daí sim teremos um produto cultural plural e realmente representativo. Isso inclui toda a comunidade LGBT, todas as etnias, portadores de deficiência física, etc. Se é para sermos plurais na representação, sejamos mesmo.
EnT - Existe algum tipo de papel, isto é, alguma mulher que você gostaria de interpretar no futuro ou criar uma mulher personagem que ainda não teve a oportunidade? Qual? Por quê?
Sabrina - Eu assisti recentemente Capitã Marvel e adorei. Adoraria ter assistido esse e outros filmes de heroínas na minha infância. Então, creio que gostaria de fazer uma heroína de HQ também, coisa que não era tão comum há uns anos atrás.
EnT - Qual conselho você daria para uma mulher que gostaria de começar sua carreira no audiovisual?
Sabrina - Insista, estude muito e não desista. Precisamos de você.
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