A trajetória de Eunice Paiva em "Ainda Estou Aqui"
- Giovana Costa
- 14 de nov. de 2024
- 6 min de leitura

Para além da ditadura militar, seus horrores, os políticos envolvidos, seus acontecimentos históricos e desdobramentos, “Ainda Estou Aqui” é uma narrativa sobre a trajetória de uma mãe. E este talvez seja o principal elo entre a sensibilidade, a tensão, a delicadeza e a angústia que a história carrega.
As camadas do filme vão se revelando aos poucos, curiosamente, da mesma maneira que a percepção histórica da frágil democracia brasileira se dá ao longo dos anos, geração após geração.
Num momento crítico em que o terrível período ditatorial é celebrado, sobretudo em eventos como os atos golpistas de 8 de janeiro em Brasília ou a partir das diversas falas, resultantes do nefasto saudosismo pela ditadura militar, do ex-presidente Jair Bolsonaro (hoje, inelegível), a obra de Walter Salles surge como um lembrete dos tempos sombrios e da urgência de uma memória mais vívida em relação ao que, de fato, foi o golpe militar de 1964 no Brasil.
Após estrear na liderança da bilheteria nacional, arrecadar mais de R$ 8 milhões e levar mais de 350 mil pessoas às salas de cinema do país (segundo dados da ComScore), o longa “Ainda Estou Aqui”, adaptação cinematográfica do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, dirigido por Walter Salles, é o indicado brasileiro para tentar uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar.
Mãe de família
“Ainda Estou Aqui”, ambientado em 1970, gira em torno do desaparecimento do engenheiro e deputado Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello), das consequências da ausência de respostas, da truculência silenciosa dos agentes da ditadura militar, do doloroso luto de muitas famílias, mas principalmente, da atuação, resiliência e ação combativa de Eunice Paiva, vivida por Fernanda Torres.
Num longo prólogo repleto de divertidos momentos corriqueiros e alegres que apresentam o cotidiano da família Paiva, é notório o afeto e o cuidado da mãe com os seus cinco filhos, Vera, Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz, e o seu marido, Rubens. Nas primeiras cenas, a Eunice que toma as telas é uma mãe tradicional. Em um vestido delicado, os cabelos penteados e um sorriso cheio de aconchego, ela está sempre preparada para acolher os filhos, passar bons momentos com o marido e cuidar da casa, em parceria com a empregada doméstica Zezé (interpretada por Pri Helena), que igualmente cuida da família e se preocupa com as crianças a todo tempo.
Curiosamente, na mesma medida em que percebe-se a delicadeza e o zelo da mãe, é possível notar a percepção sempre atenta e muito alerta de Eunice. Mesmo nas situações mais descontraídas, logo se dão os primeiros olhares desconfiados sobre os detalhes repressivos daquele momento de incertezas. Até mesmo na orla da praia, durante um retrato em família, a mulher percebe a presença dos militares e sua feição revela essa vigilância.

Preocupada com o futuro da filha mais velha Vera (vivida por Valentina Herszage), em um momento que já indica possíveis perigos para o perfil de uma juventude destemida (como é o caso de Veroca), Eunice encontra mais tranquilidade na partida de sua filha para Londres. Estes são os principais contrapontos que se apresentam e evidenciam a dualidade desta mãe que cuida, protege e que, apesar de não participar ativamente da militância, reconhece os perigos que se aproximam de sua família, e consequentemente, de todo o país.
Tensão, brutalidade e agonia
Assim que Rubens Paiva deixa o seu lar e os agentes da ditadura entram na casa, o trabalho de som e fotografia do longa já revela o desconforto, a sensação de enclausuramento e o desespero que a família, e também os espectadores, passarão a vivenciar a seguir. Janelas fechadas, ambiente escuro e uma Eunice… calma.
Diferentemente do que todos esperam, como gritos, questionamentos e muita raiva, o que a protagonista entrega é bem distante disso: numa postura comedida, pequena e colaborativa, Eunice não faz perguntas diretas, não esbraveja, não se irrita. Assustada, ela pede que guardem as armas argumentando que seus filhos estão em casa. Buscando raciocinar e garantir a segurança da sua família, ela oferece almoço às figuras que invadem a sua casa e que lhe causam pavor.
Este é o segundo momento em que o público se depara com uma das formas de resiliência da protagonista que, mais tarde, será ainda mais testada. É a partir de então que fica evidente como Eunice resistirá dali em diante quando se deparar com os horrores do interrogatório (assim como sua filha Eliana), com os gritos desesperados dos torturados, com a dúvida, o medo, a solidão e o desamparo de nem sequer ter o direito de saber se o seu marido está vivo ou morto.
O que resta para a mãe de família?
Em uma cena descontraída, antes do desaparecimento do marido, Eunice conversa com uma amiga e ao ser perguntada sobre os seus filhos, ela brinca: “São seis filhos se contar o Rubens também”. De forma sutil, revela-se a obrigação e as responsabilidades que o papel de mãe impõe a ela. Proteger, cuidar, zelar… Os verbos mais comuns à maternidade se estendem até mesmo ao marido.
Ainda que muito paternal, presente, doce e cuidadoso com a sua família, Rubens também guardava segredos. Seja a partir de ligações misteriosas ou encontros mais reservados com os colegas de luta, o pai se atenta em não revelar o teor das conversas, nem para os filhos, nem para a esposa - para a surpresa tardia da protagonista. Combativo e disposto a ajudar os outros companheiros militantes, Rubens contribuía recebendo cartas de pessoas exiladas e as reencaminhava para parentes e amigos. Assim como também ajudava a manter um apartamento que abrigava pessoas perseguidas pela ditadura.

Após ter a privacidade da sua família invadida, lidar com o mistério do paradeiro de seu marido e os exaustivos 12 dias presa nas dependências do DOI-CODI carioca, diante da falta de respostas, da necessidade de ação, Eunice revela novas facetas ao público. Na sorveteria, que costumava frequentar com a sua família, já sem a presença do marido, nota-se a mudança estampada em seu rosto: um luto sem ritos, a premonição de uma resposta fúnebre, mas sem detalhes… Rubens não volta mais.
Apesar das adversidades, desde as mais óbvias como o desaparecimento de Rubens, até as mais simples e absurdas, como a dificuldade de sacar dinheiro no banco sem a autorização do marido, ela passa a ter uma postura combativa e mais firme. Eunice passa a demonstrar força, sente e demonstra a sua raiva e segue lutando pela segurança de seus filhos.
Mais tarde, após descobrir que o marido desaparecido político, foi torturado e assassinado nos porões do DOI-CODI no Rio de Janeiro em janeiro de 1971, mas sem qualquer informação sobre o corpo, sem qualquer chance de viver um luto digno, Eunice se depara com a verdade e descobre que Rubens guardava segredos. Diante da dor da perda, da sensação de impunidade e do peso de descobrir o possível motivo pelo qual o marido foi assassinado, com lágrimas nos olhos, a mãe ainda busca forças para consertar a boneca da filha, esboça um sorriso e já sabe que a partir dali, sua busca tem outro destino.
Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva
Em 1996, após 25 anos, Eunice conseguiu que o Estado brasileiro emitisse oficialmente o atestado de óbito de Rubens Paiva. Num longo processo de luta por justiça, um marco.
De dona de casa, Eunice se torna advogada e passa a sustentar os cinco filhos sozinha. Posteriormente, passa a ser reconhecida como uma ativista dos direitos humanos e combate a política indigenista do regime. Dos horrores da repressão à luta por justiça, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva se tornou um dos maiores nomes do direito indígena no Brasil.
Em 1987, com alguns parceiros, fundou o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA), que até 2001, contribuiu diretamente com a defesa e autonomia dos povos indígenas. Em 1988, Eunice tornou-se consultora da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Constituição Federal Brasileira.

Símbolo da luta contra a ditadura militar, foi uma das principais agentes a favor da promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante a ditadura militar.
Nas palavras do filho e escritor do livro que inspirou o longa, Marcelo Rubens Paiva, a constante luta pela redemocratização e pelos direitos civis, sobretudo de outra mulher, foi indispensável para que o filme pudesse existir: “Tenha dito! Por conta da Comissão da Verdade, tive elementos para escrever o livro Ainda Estou Aqui, e agora temos esse filme deslumbrante. E Dilma (Rousseff) pagou um preço alto pelo necessário resgate da memória.”
Na cena final, magnificamente interpretada por Fernanda Montenegro, apenas o olhar, em pouco tempo de tela, é capaz de comunicar muito. Rodeada pelos filhos, a protagonista se depara com uma imagem do marido na televisão e nem mesmo uma doença como o Alzheimer que a acomete é capaz de apagar de sua mente a luta que travou e, claro, o seu próprio redescobrimento durante o processo.
De uma forma minimalista frente à brutalidade da ditadura militar, “Ainda Estou Aqui” evidencia os silêncios da impunidade e as ausências de respostas do período, mas faz questão de dar luz à história de Eunice Paiva, de maneira em que cada minuto da obra seja capaz de revelar o seu autodescobrimento, sua coragem, sua vulnerabilidade e sua força em tempos tão sombrios.
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